domingo, 31 de maio de 2015

Takarajima - A Revolução Demonstrada




"Fifteen Men on the dead man's chest
Yo, ho, ho, and a bottle of rum...
Drink and the devil has done for the rest...
Yo-ho-ho, and a bottle of rum..."

Um dos bildungsromane mais icônicos da literatura ocidental é A Ilha do Tesouro, de Robert Louis Stevenson. Senão pelos seus grandes méritos, por sua assustadora permeabilização no inconsciente coletivo, obrada por transcriações em outras mídias - Das quais talvez o filme de 1972 seja o exemplo mais memorável. De todo modo, aqui temos uma das obras-chave da formação do imaginário infantil. Todo aquele que ler lembrar-se-á para sempre da sublime Hispaniola, a navegar pelas águas espumantes do Caribe, da mensagem honrada de Billy Bones e do usurpador Capitão Long John Silver. Parece então claro que landmarks como One Piece são parte da corrente de romances piratas por este iniciados. E quais são pois os demais elos?

Poucos sortudos conhecem Takarajima, a monumental adaptação feita para o anime. De fato, vários nomes que construíram tal arte são sempre recordados: Hayao Miyazaki, Yoshiyuki Tomino, Hideaki Anno - E este é uma serpente no caminho -, Isao Takahata, Satoshi Kon... Osamu Tezuka. Um grande gênio, seu criador, ergueu-se à sombra do Deus do Mangá. De fato, tal parece ser o fruto da divina providência, pois ambos eram homônimos.

Seu nome era Osamu Dezaki. Este poderia ser descrito como o reinventor de tal mundo. Ele goza da alta distinção de ter primeiro almejar transformar o anime televisivo - Então um reino comercial, dominado pelas obras infantis - em obra de arte. Eis o encarregado de recriar tal romance icônico. Tal como o autor, um reacionário alheio à modernidade e a toda forma de revolução. As semelhanças, porém são rasas. Stevenson era um Tory angustiado, um niilista desiludido com a bondade humana, crente de que o homem só teria pequenas vitórias antes do ocaso final. Dezaki, ao contrário do escocês, era um romântico com profundo amor pela humanidade.

(Daqui em diante há spoilers, porém aviso de antemão que, com exceção da cena final, a apreciação de Takarajima não depende de nenhum elemento surpresa.)

Ora, o conservadorismo de ambos os criadores pode parece irrelevante à compreensão das obras. Tal tese é indefensável. Antes de mais nada, A Ilha do Tesouro é um estudo velado das sublevações, do surgimento ao culmino canibal, no qual nenhum valor é garantido. Talvez por tal razão Dezaki tenha tido tanto esmero em sua adaptação: Em sua magnum opus Ie Naki Ko Remi, este critica a hipocrisia dos ideiais de 'Liberté, Egalité, Fraternité'. O seu Versailles no Bara dá à Revolução uma visão absolutamente cética, transformando as figuras de Phillippe Egalité e Saint-Just nos grandes antagonistas.

Mais ainda do que no original, é óbvio que Long John Silver é o 'one-legged man' a que todos se referem, o único homem que Flint temia, contudo um véu de bondade cega a todos, inclusive aos espectadores para as reais intenções de tal homem. A intenção permanece sendo de que o leitor tenha absoluta simpatia por tal figura, a despeito de todas as evidências, e que com ela permaneça até o fim do enredo.

Um episódio de trama não contida no livro realça seu papel. Imediatamente ele mata um de seus companheiros que suspeitava do seu real intuito. A ossada deste ressurge num navio fantasma, e aponta para seu algoz. Este nada até a embarcação, quebra tal esqueleto, e junto a ele o sortilégio. O triunfante Silver grita: "Eu não creio em Deus e nem no Diabo!!!" O pirata do livro era um protestante devoto que tremia ao ver a Bíblia profanada. E temos um marujo cujo ceticismo não é abalado pela mais evidente assombração. Tal ateísmo é a primeira pista do papel revolucionário deste, em nada diferente de Lênin, Stalin ou Mao-Tsé-Tung, da revolta contra as autoridades do Velho Mundo.

Imediatamente começa o contra-motim. Hands, seu mais leal companheiro dos tempos de bucaneiro, entra em frenesi incandescente e executa três companheiros. O manco é então preso. Estes veem-se no entanto, em um dilema: O homem comum não pode se gerir sozinho. A contragosto, liberam seu mentor, e o forçam à análise do mapa, até que este, desiludido e acuado, decide se unir em barganha com o grupo de Jim, Smollet e Livesey, tal qual um outro Danton ou Kerenski. Mesmo na humilhação, nobreza. Eis que a revolta se implode. O ouro é achado, porém aquela velha águia de duas pernas consegue fugir.

Um esquerdista mais obstinado poderia afirmar que há um retrato simpático da revolução, pois o altivo Abraham Grey - Novamente à revelia da obra original - morre nos verdes campos da Irlanda, lutando pela expulsão do invasor inglês. Ora, meus amigos, aqui temos a restauração, o diametral oposto da luta pela modernidade. O Anglicanismo foi a inovação moderna, que almejava esmagar as tradições de um velho e honrado povo, e impor-lhes a modernidade.

No entanto, todo este comentário parece distinto do brilhantismo da cena final. Jim Hawkins tornou-se adulto, e partiu da Almirante Benbow rumo ao mar. Numa taverna da Argélia, este encontra um velho marujo perneta, agora grisalho, bebendo para esquecer a morte da sua linda dama. Este desafia o agora crescido herói para uma queda de braço, cuja mocidade não pode ganhar. Após a derrota, clama em vão pelo velho amigo, tão amado e odiado ao mesmo tempo. O temido pirata, que foi de cozinheiro a capitão, declarou não conhecê-lo.

Ele segue-o ardorosamente em busca de contato. Flint, o papagaio, mal pode voar. Lança ao velho companheiro então, o desafio de erguer suas asas, sair do chão e sentar em seu ombro. A ave consegue. O velho segue para o cais, sibila sua cabeça para o pupilo e sorri. E vemos uma das linhas mais belas da história do anime:


"Naquele dia encontrei o meu Silver."

segunda-feira, 2 de março de 2015

A Razão Prática Dos Joestars



Para um 'mocinho':

1-) Evite viajar para os seguintes países: Egito, Inglaterra, Índia, Estados Unidos e JAMAIS entre na Itália.

2-) Se vir algo estranho, é um Stand. 

3-) Se vir um objeto que desperte mínima curiosidade, não toque e saia de perto o mais rápido possível. 

4-) Todo Stand que aparecer subitamente é um adversário. 

5-) De todo possível Stand, CORRA. 

6-) Jamais fique sozinho em qualquer ambiente. 

7-) Não fique em grupos menores do que quatro pessoas. 

8-) Na dúvida, o Stand do seu maior inimigo envolve manipulação do tempo: Proceda com cautela quanto a isto. 

9-) Se fores da linhagem Joestar, seu primeiro aliado morrerá em um espaço de seis meses. 

10-) Prefira viagens terrestres. Todos os demais meios de transporte são absolutamente desaconselháveis. 

11-) Um hotel é um dos ambientes mais inseguros possíveis. 

12-) É desaconselhável descer escadas.

13-) Todas as rotas aparentemente seguras não são seguras sem o advérbio. 

14-) Distancie-se dos becos. 

15-) EM HIPÓTESE ALGUMA EXPLIQUE SEU STAND AO OPONENTE. 


terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Um Cânone das Séries de Anime

Cânone na linguagem literária pode significar uma lista de livros indispensáveis. Em resposta a um tópico de um renomado fórum de anime e mangá, fui perguntado por um amigo: Qual seria o seu cânone do mundo do anime. Comecei a recolher na minha mente as obras que julguei dotadas de maior transcendência. Reuni 30 séries de televisão e OVA's que julguei serem essenciais para o apreciador inteligente, e de boa vontade, que queira fazer um estudo do meio, dispostas em ordem cronológica, às vezes acrescidas de comentários que não tem por fim serem uma sinopse, e sim minha opinião pessoal sobre a obra:

1-) Ie Naki Ko Remi (1977) - Para mim, este é o maior anime de todos os tempos, a série que deflagrou a 'era comercial'.




2-) Akage no Anne (1979) - Eu considero este um dos títulos mais profundos a terem sido animados no Japão. God's in his heaven, all's right with the world. 




3-) Mobile Suit Gundam (1979) - A trama de Yoshiyuki Tomino foi, junto com Astro Boy no mangá, o grande gatilho para a absorção do gênero que é a ficção científica japonesa. Talvez - Com a possível exceção das adaptações da Jump Clássica e de um certo outro mecha -, a obra que mais imprimiu memes no imaginário dos fãs de anime. Char Aznable vestirá para sempre o escarlate...



4-) Versailles no Bara (1979) - É espantoso que Riyoko Ikeda tenha retratado de modo tão vívido uma fase da história que é vista dentro da comunidade historiográfica como imperscrutável, e que o drama ocidental falhou totalmente em retratar. E somente um ás como Osamu Dezaki conseguiria a proeza de criar animação perfeita do desenho perfeito.



5-) Mobile Suit Zeta Gundam (1985) - Na calmaria, vem a tempestade. Vemos aqui o caos geopolítico nascido do delírio americano de ordem. Tomino criou um colosso em todos os aspectos superior ao seu primeiro grande trabalho, porém falhou em cravá-la no imaginário popular tão bem como a sua obra predecessora.




6-) Kimagure Orange Road (1987) - A codificação da fantasia urbana na arte que é o anime. Talvez uma das adaptações que mais escoimou o original...



7-) City Hunter (1987) - Uma das transposições mais bem-sucedidas da Jump Clássica. É memorável sobretudo pela ótima animação, fantástica trilha sonora e pela dublagem que é tida como uma das melhores da década de 80 - Não sem razão.



8-) Legend of The Galactic Heroes (1988) - Seria uma injustiça falar de um 'personagem principal' em LOGH. O protagonista é a humanidade. A proposta de tal saga é simples: Haverá um longo e paulatino ciclo em que a história eternamente se renova.



9-) Gunbuster (1988) - O primeiro da tríade clássica da Gainax. Já vemos aqui o Mecha de Horror Cósmico na sua forma seminal. Esta série de OVA, mesmo mais que Neon Genesis Evangelion, trata da luta ininterrupta do homem contra o desconhecido. Seu desfecho é famoso por ser ao mesmo tempo inconclusivo e extremamente comovente. A razão para a evocação de tais sensações simultâneas é simples e conhecida pelos francófilos: C'est la vie. 



10-) Angel Cop (1989) - Os anos 80 e 90 foram notáveis pelas coletâneas de OVA do gênero cyberpunk, sendo Bubblegum Crisis a mais famosa. Angel Cop é infame por ser considerado propaganda de extrema-direita imersa em violência, contudo seria uma injustiça negar os seus méritos.



11-) Fushigi no Umi Nadia (1990) -  Steampunk é um recurso narrativo extremamente difícil de ser manejado. Conciliar o passado e o futuro mantendo a coerência é uma prova de fogo. Hideaki Anno - Baseado em um projeto de Hayao Miyazaki - criou uma complexa trama sobre o corpo das 20.000 Léguas Submarinas de Júlio Verne, um dos romances que moldaram a ficção científica.



12-) The Irresponsible Captain Tylor (1993) - Posso afirmar com pouquíssima margem para dúvida que aqui temos o anime mais hilário já produzido. Justin Ueki Tylor é um preguiçoso oportunista que consegue a patente de Capitão das Forças Planetárias Unidas graças à sorte. Ele pode transformar o mundo sem querer. Será? Esta dúvida é que mata...




13-) Neon Genesis Evangelion (1995) - Sem comentários. 



14-) Shoujo Kakumei Utena (1997) - Uma série famosamente confusa, porém empolgante. Um dos grandes marcos da periferia shoujo. É difícil prismar a mensagem que o Kunihiko Ikuhara quer passar. É ainda mais tortuoso tentar criar uma conexão linear entre os eventos. Talvez tenhamos uma das melhores execuções de um enredo duvidoso. 



15-) Cowboy Bebop (1998) - Tal qual Evangelion, não há necessidade de maiores elucubrações aqui. Deixemos o imaginário popular pensar mais a respeito...




16-) Serial Experiments Lain (1998) - Serial Experiments Lain, é uma obra extremamente representativa da sua época. Às vésperas do Terceiro Milênio houve um boom nunca antes visto de ideias 'exóticas'. Pós-modernismo, teorias da conspiração, seitas apocalípticas e temores de uma nova crise financeira pipocavam. A proposta deste anime foi codificar o sentimento geral da época. Chiaki Konaka, seu roteirista, disse que esperava que o público ocidental interpretasse sua criação de modo diverso do japonês. Isto não aconteceu. Talvez possamos dizer que SEL é ao mesmo tempo uma obra prima e um retumbante fracasso...



17-) Now and Then, Here and There (1999) - Não é para os corações fracos. Uma das coisas mais brutais a já ter sido feita na animação japonesa. Um trabalho igualmente aclamado e polêmico...



18-) The Big O (1999) - Confesso que este item talvez tenha me provocado o maior receio em toda a lista. Uma homenagem ao Noir, e ao Mecha com forte influência da DCAU, temos um dos poucos casos de um anime criado com um enfoque para o público ocidental. Antes de tudo aviso ao leitor que se trata mais de uma obra inconclusa do que propositalmente hermética. 




19-) Noir (2001) - Isento-me de dar por hora opinião sobre esta sensacional série. O texto Escuridão e Luz da Europa, de meu amigo Vaca, do blog All Fiction, por hora já sintetiza minha opinião. 




20-) RahXephon (2002) - Yutaka Izubuchi foi colaborador e aprendiz de Hideaki Anno e Yoshiyuki Tomino. Quase que por consciência culpada, este taciturno diretor - Após o fracasso de Argento Soma - decidiu criar um anti-Evangelion, e logrou êxito. Por alguma razão, após esta magnífica produção, ele nunca mais esteve à frente de um projeto. Que pena!



21-) Requiem From The Darkness (2003) - Uma obra de horror gótico em um ambiente Jidai Geki que por alguma razão caiu no esquecimento. Talvez pela excessiva sanguinolência ou pela animação surreal. Ou quiçá por causa da popularização de Mononoke anos depois, que codificou o gênero. Não obstante, temos um dos mais sólidos animes de terror já feitos, cuja originalidade e cujo experimentalismo tem êxito em prender o leitor.



22-) Gungrave (2003) - Seria melhor descrito como 'Katekyo Hitman Reborn' para adultos. Famoso pelo character design de Yasuhiro Nightow, temos no entanto algo muito superior a Trigun. 



23-) Kaleido Star (2003) - Uma produção ambiciosa subsidiada pelo Cirque Du Soleil, versando sobre o mundo das performances circenses. Notório sobretudo pelo final icônico, onde humano e natureza fundem-se para criar o número final. 



24-) Gankutsuou (2004) - Seria deselegante versar mais sobre esta soberba adaptação literária quando já o fiz aqui.


25-) Suzumiya Haruhi no Yuutsu (2006) - Suzumiya Haruhi no Yuutsu vem à mente dos otaku por duas circunstâncias: Em primeiro lugar, por ser o estereótipo de anime pós-moderno. Em segundo, por ter sido uma verdadeira fonte de memes. Pena que a versão de 2009 tenha falhado com a franquia, algo que só foi catalisado pelo longo hiato das light novels. 


26-) Baccano! (2007) - Ao longo da história, pessoas adquiriram a imortalidade, em vários eventos - O mais notável em 1711 -, e estes permaneceriam vivos, continuando seus esquemas e articulações - Ainda que a adaptação só cubra os volumes relativos à era da Lei Seca. A sua grande virtude de Baccano! é que há uma premissa que é trabalhada de modo consistente, sendo as suas mais diversas implicações exploradas ad absurdum. Espere antes de tudo ver a anarquia que o nome sugere...



27-) El Cazador de La Bruja (2007) - A terceira obra da trilogia da Girls With Guns, da Bee Train de Koichi Mashimo. El Cazador de La Bruja passa-se na América Latina. No estilo do seu diretor, há uma forte enfase no papel de protagonismo da mulher, no cenário, nos círculos de mistérios e por fim na redenção. A diferença fundamental é que desta vez vemos algo plenamente acessível ao espectador comum, o que foi a retumbante falha de Madlax. 



28-) Seirei No Moribito (2007) - Pensem no Senhor dos Aneis. Imaginem o seu pano de fundo sendo o medievalismo oriental ao invés do ocidental. Seirei no Moribito é o produto de tal raciocínio. O jovem príncipe Chagum revela-se portador do ovo de um pássaro místico, o que o faz ser perseguido pelo Mikado, seu pai. A lanceira Balsa é encarregada pela mãe de protegê-lo. Uma releitura do arquétipo messiânico, em especial da narrativa de Krishna. 



29-) Tengen Toppa Gurren Lagann (2007) - Os memes falam por si sós. 



30-) Mnemosyne (2008) - A menor série animada já exibida na TV japonesa versa sobre a imortalidade, numa ótica similar à de Baccano. A grande diferença é que esta é uma saga de gerações. Seu enfoque está muito mais na família e na sociedade do que nos personagens. 





Esclarecimentos: Este cânone não é uma lista fechada, vindo a ser futuramente ampliado várias vezes. Esta é só minha lista provisória para despertar a um iniciante uma apreciação crítica da mídia. Seu anime predileto não está incluído? Este rol obviamente está limitado por vários obstáculos. Uma razão de exclusão de itens é a controvérsia. É delicado inserir obras polêmicas ou cujos apreciadores formem um nicho reduzido. Por razões futuramente esclarecidas, o objetivo desta relação é abordar somente as obras feitas até 2008. Haverá futuras emendas a este catálogo, que repita-se, não é definitivo.  



domingo, 16 de fevereiro de 2014

Os Arautos do Fim do Mundo


 Saint Seiya, Neon Genesis Evangelion, Revolutionary Girl Utena, Slayers, Blue Seed, Rave, The Big O, Tokyo Babylon... Quais conexões tais nomes nos despertam de imediato? Foram todos animes e mangás essenciais na popularização do gênero?

 Grandes componentes da Era de Ouro que fechou o milênio? Um neo-otaku lacônico poderia dizer: "São clássicos". Todas as respostas estão corretas, porém não completas. Há por acaso uma característica que crie um eixo estilístico no delicioso ínterim que foram os anos 90?

 Sem parcimonia, podemos notar uma grande e frequentemente ignorada semelhança entre todas estas obras. Todas carregam um forte tom apocalíptico e milenarista próprio de tal período. Após o colapso da União Soviética, uma incerteza palpitante salpicou a humanidade. As profecias de Nostradamus advertiam para o fim iminente em 1999, o que jogou o mundo em polvorosa. No Japão tal sinal foi sem dúvida catalizado. A economia da Terra do Sol Nascente tinha entrado em uma década perdida. Masayoshi Son, o seu maior magnata, chegou a perder 99% do seu patrimônio por ocasião do estouro da bolha do "pontocom". A taxa de natalidade começava a despencar irreversivelmente. A irreligião crescia assustadoramente a detrimento das velhas tradições do xintoísmo e do budismo, e também as seitas, como a famigerada Aum Shinrikyo. Dariam os céus clemência aos nossos pecados?

 Em todas as referidas séries, o homem é preponderantemente retratado como um ser desprezível. Os seres superiores teriam total razão em punir, exterminar e reformar. Invariavelmente eles eram derrotados ou dissuadidos, a um custo de incontáveis vidas. Os campeões da justiça eram sempre grupos pequenos, solitários e semi-secretos que eram admitidamente exceções em um mundo corrupto e leviano. Não há então lugar para otimismo inútil e nem mesmo os finais felizes - Quando existentes - são conclusivos. A humanidade nunca se salva. Ela é salva. O processo é invariavelmente passivo e mesmo os herois admitem que talvez os habitantes da Terra não sejam dignos de tal expiação. 

 Tal último pensamento tem sua síntese em Saint Seiya. Os deuses estão determinados a destruir a raça humana e Atena e seus Cavaleiros assumem o fardo da proteção do planeta. Ao "término" de tal aventura, quase todos os servos da Senhora da Sabedoria e da Guerra estão mortos. No discurso de morte de Hades, o senhor do submundo, ele não tenta esbravejar contra a sua inimiga, contra Seiya e nem contra os seus demais servos. Ele apenas a adverte chorosamente da iminente decepção que terão com os que protegem. A Grande Deusa então afirma a sua confiança em uma possível redenção do bicho-homem. Tal mangá até hoje não terminou, pois tal conversão ainda tarda em chegar. 

 Outro marco é o memorável Neon Genesis Evangelion. O castigo, na forma do Segundo Impacto, já veio. E não foi punição suficiente. Os "Anjos", aberrações tétricas nunca explicadas, vem nos destruir. A SEELE, a seita temível que controla o mundo de modo ventrilóquico, tenta se utilizar da catástrofe em prol de um ideario nebuloso. O tiro sairá pela culatra. Então vem a mais tórrida revelação: A Humanidade é o Décimo Oitavo Anjo. O mais perigoso. Eis que surge uma bifurcação nos destinos de todos: Liberte-se ou jaga pela eternidade no mar de LCL. E cada um precisa sair de duas prisões: O Eu e o Tu de Buber. 

 Uma outra destas memoráveis franquias leva tal autocrítica ao grau máximo. Blue Seed versa sobre a vingança do deus trovão do Konjiki, Susanoo. E a fúria divina é direcionada a uma nação que afronta a sua própria existência com o crime, o desmatamento, a ganância e a promiscuidade. É o Japão. Os Aragami, plantas encantadas, engolirão toda a natureza corrupta ao estado vegetal de que  No que talvez seja um dos manga mais de alma mais nipônica, há uma cena obscura que reverbera na mente dos escolhidos. Kunikida Daiketsu, policial ultra-patriota, salva a sua assistente Ryoko de um grupo de estupradores. Ele a joga uma triste dúvida: Este é o país que estamos tentando salvar? Valerá a pena? Talvez tenha sido o lamento mais profundo de depreciação nacional de toda a cultura pop japonesa. 

 No impulso do pós-modernismo, todos os aspectos da vida humana parecem estar sendo manipulados pelas forças vingadoras que manejam a criação em prol da destruição. A mensagem de Utena é que mesmo a nossa idealizada educação formal seria uma catapulta para o Fim do Mundo, e que devemos ver todos como ameaças fundamentais. Rave versa sobre o grande favor divino que é a manutenção do Universo, que torna a sua existência indigna e o seu colapso barato. Que cacemos individualmente outros exemplos que não são passíveis de inclusão e crítica em tal triste crítica. 

 Veio o amanhecer. O século XX, o mais violento de todos os tempos, acabou. Como o Apocalipse não veio, todos voltaram reclusamente para a sua ilusória felicidade. A ficção deste novo momento prima pelo otimismo e pela crença na inata bondade do homem. Para que falar de castigos divinos, em uma época em que autores como Richard Dawkins e Christopher Hitchens inocularam seu ateísmo hedonista nas massas? Qual a utilidade das preocupações, se o novo lema é "Yes, We Can?" Paulatinamente as ameaças passaram a ser aliens "científicos" facilmente destrutíveis pelo poder da amizade. Suas motivações são dúbias, mas desnecessárias em uma era que desconhece a coerência. E nem mesmo as Guerras do Iraque, do Afeganistão, da Somália e da Síria, o Onze de Setembro e a crise de 2008 foram capazes de quebrar tal sortilégio. Que saudades dos tempos da paranoia. 
 

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Gankutsuou: Atlas do Sol Nascente



Gankutsuou: O Conde de Monte Cristo. Baseado na obra de Alexandre Dumas, Le Pére. Uma das adaptações literárias mais emblemáticas da história dos animes... O que dizer?
É difícil falar de Gankutsuou sem emoção. É uma das séries mais viciantes que foram feitas no mundo A&M. O vanguardismo extremo cheio de texturas irreais: Gravuras aleatórias recortadas, de modo caleidoscópico gravam na mente do indivíduo um estigma profundo. Tal como o ácido lisérgico. Que talvez tenha sido a sua inspiração primeva...

Antes de tudo, devemos explicar o enredo: O autor transpõe o memorável livro de Alexandre Dumas para o século LI. Os Otomanos são transformados em ET's. O oceano em espaço. O Chateau D'If em colônia penal intergaláctica. As fragatas em espaçonaves. Veneza na Lua. Fica patente que tal projeto é uma Aposta de Constantino. Sucesso e desgraça. A bifurcação final. A primeira opção foi magistralmente evitada. Assim surgem as lendas.

Pela sua fonte ser um dos clássicos mais marcantes no imaginário ocidental – Ao menos entre os de relativa instrução, todos ao menos sabem do que se trata -, não há uma extraordinária necessidade de explicar o enredo. Um jovem nobre bondoso e ingênuo chamado Albert de Morcerf vai passar o Carnaval na Lua com o seu melhor amigo Franz d'Epinay.
Lá ambos acabam conhecendo um magnata cuja fortuna e influência parece ilimitada: O Conde de Monte Cristo. Vida e morte estão nas mãos deste enigmático estranho. Sendo Albert raptado, ele é quem irá salvá-lo. Uma soturna amizade é formada. E este ingênuo fidalgo irá causar a própria ruína, introduzindo à elite parisiense este homem cujo objetivo ficou gravado na mente de miríades de milhares de leitores: Vingança.

O velho Alexandre Dumas tentou criar algo que poucos predecessores tiveram coragem de fazer: Catalogar os vícios do mundo que conhecia. Corrupção, sadismo, incesto, homossexualismo, infanticídio e acima de tudo, um oceano de mentiras. Ele o conseguiu de modo sutil como poucos e elegante como nenhum. Gankutsuou prisma a totalidade de tais fatos para um meio pouco afoito a mudanças, especialmente vindas do ocidente. A combinação de gênero, roteiro e visual o colocou na história como um anime absurdamente bizarro, nunca tendo sido nem relativamente popular, por ex
emplo, no Brasil...

A temática futurista é outro papel preponderante em tal adaptação. E ela estigmatiza a mente do telespectador. A ciência e a tecnologia são retratadas de um modo incrivelmente realista para supostos três milênios a frente de nós. Não há os famosos DOS sci-fi de Lengend of Galactic Heroes e Gundam. Nem o recurso a delírios como o transhumanismo e a inteligência artificial “forte”. O que assiste a tal tétrico empreendimento ficará convencido de que no ano 5053 poderá haver computadores holográficos, colônias lunares e uma sociedade tecnofeudal. Por mais difícil que seja unir tais conceitos.

 Enfim: Gankutsuou não é apenas uma adaptação: É recriação. Fiel e inovador. Mágico. O último mergulho em uma saga centenária. Como podemos criar uma originalidade alterando? Como o restaurar renovando? Para uma dúvida não temos resposta, sim no máximo um contraexemplo. O que dizer?

sábado, 5 de outubro de 2013

Um Modesto Desabafo



Hoje os fãs de anime e mangá são recorrentes nas diversas partes do Brasil. Cosplay virou um hábito não tão incomum. Eventos que emulam as convenções do primeiro mundo acontecem mesmo em médias cidades. Mangás já são editados por quatro editoras. O clima, contudo, é de insegurança. A história já demonstrou que o ápice é a parte mais perigosa na vida de uma instituição. Do cume caíram dos romanos aos Estados Unidos da América.

O horizonte é escuro. Uma das maiores fontes de bruma é o tratamento irracionalíssimo dado ao anime na televisão brasileira. A porta de entrada da maioria dos assim chamados otaku foram sessões de Dragon Ball, Naruto, Yu Yu Hakusho, entre outros... A nova geração nem nos canais pagos tem acesso a tais clássicos mais básicos, ainda mais a raras gemas já exibidas por aqui.

Há um fenômeno que cataliza tal praga: A comum desistência de quem tem tal hábito. Não é difícil perceber que tal passatempo dificilmente dura dez anos. Uma parcela majoritária deixa o anime e o mangá utilizando vários chavões clássicos, como “Falta de Tempo”. Não será difícil descobrir que os cinéfilos e os western nerds, ao menos na Terra de Santa Cruz onde vivemos, raramente abandonam tais hobbies.

Um dos motivos do segundo problema é algo que é tabu até no meio afim: Implicitamente a sociedade brasileira nunca aceitou tal tipo de mídia. Em um país onde a simples infância se tornou algo rotineiramente desprezada, o simples fato de serem animações foi algo rotulado como infantil, e desde os anos 2000, tudo o que aparentasse ser pueril demais passou a ser desprezado.

Certamente a escolha das séries exibidas foi uma péssima aposta. A maioria delas abordava excessivamente a cultura japonesa, em especial o gênero Jidai Geki. Longe de ser uma crítica à qualidade de tais clássicos, era arriscado demais querer expor um povo tipicamente inculto a uma cultura exótica e até mesmo vista com desdém... Para cada espectador que se tornava um fã de Ranma ½, dois viravam o rosto por achá-lo muito estranho ou anormal.

Por fim, existe uma pá de terra que vem direto da matriz, no Japão. Todos sabemos que a Shonen Jump está saindo do seu ápice... Em breve, monstros sagrados como Naruto e Bleach irão acabar... E causar uma forte sangria de fãs em tal mercado, afetando inclusive os nossos japanófilos.


  Este é um texto pessoal... Soluções? No momento elas inexistem. O máximo que podemos fazer é rezar... Para que não voltemos a ser mais uma subcultura que vive nos grotões do Brasil...  

domingo, 29 de setembro de 2013

Rave: A Herança do Destino




Entre mangáfilos e mesmo mangaka, há uma recorrente disputa: Quem é o sucessor de Dragon Ball? A corrente predominante diz que One Piece teria herdado o manto do gênero que Akira Toriyama codificou. O Battle Shounen de Oda teria de fato herdado a maioria dos truques e clichês imortalizados por Goku e seu grupo. Uma segunda corrente afirma que Naruto seria o herdeiro direto. É visível que Masashi Kishimoto possui certa obsessão exagerada por emular o estilo de Toriyama, por exemplo, nas paisagens... Há ainda quem alegue ser Bleach o detentor de tal manto...

Todos estes pecam em algo. É certo que se a Weekly Shonen Jump for indispensável a tal sucessão, algum destes poderá ser o executor... No entanto, um mangá da WS Magazine é muito mais apropriado para receber tal herança: Rave.

A obra de Hiro Mashima – Mais conhecido por seu outro mangá Fairy Tail – é sobre um garoto chamado órfão Haru Glory. Ele vive em uma ilha com sua irmã, a única familiar que lhe resta. Quase não possui conhecimento da vida em sociedade e das convenções humanas. Um dia ele encontra Shiba, um ancião egresso de diversas batalhas que esconde um segredo: Ele é o antigo Rave Master, o guardião do mundo contra as forças do mal.

O velho dá a Haru a Espada Ten Commandments, designando-o à missão de encontrar as quatro outras Raves e assim salvar a terra de uma catástrofe global. Um obstáculo imediato é uma milícia privada chamada Demon Card, cujos integrantes de fato governam grande parte do mundo. Suas armas são gemas mágicas malignas chamadas de Darkbrings, cujos poderes podem chegar a proporções surreais.

O herói incorruptível e socialmente inexperiente, o arquétipo do velho sábio junguiano, a caça aos itens oníricos, o exército particular que impede a luta, tal fórmula é magistralmente aplicada por mashima. Nenhum dos demais clamantes à sucessão usa todos os emblemas próprios ao brasão de Dragon Ball...

O seu mascote é um ser aberrante chamado Plue. Há algum vínculo entre ele e o Rave Master. Sua raça? É uma incógnita que dentro das quatro paredes da ficção gera discórdia. Cachorro? Inseto? Foca? O certo é que ele é um pequeno filhote branco com nariz cornífero dourado, onívoro em sentido absoluto e aparentemente sujeito à osmose quando imerso em água...

Continuando a análise: O viajante encontra uma donzela desmemoriada, perdida... Seu nome é Elie. Fica patente que além de um segredo, ela possui um grande poder. Ambos se unem na travessia pela verdade... Este casal foi seminal na gênese do manga do novo milênio. Como Shinji e Rei, Oscar e André, em tal conúbio há um forte paradoxo: Um dos namorados pode salvar o mundo... O mesmo que precisa ser salvo. O messias necessita de uma mão para lhe resgatar das sombras do próprio âmago.

A casca da tarântula precisa se desgarrar, para que possa crescer. Hamrio Musica, um Silver Claimer – Alquimista com poderes sobre a prata -, entra no grupo. Como todos os demais, ele está em busca de respostas... Bandoleiro temido, hedonista insaciável, sua vida é um devir-rio heraclíteo. Durante tal saga, ele muda diversas vezes de grupo e de interesses românticos. Ele nunca chega a uma conclusão pessoal: É um homem-ilha...

Muitos outros personagens extremamente bem-desenvolvidos entram para os Rave Warriors. Não é o nosso dever abordar a todos eles.

Um dos sumos méritos do mangá é o excelente aproveitamento dado a uma das questões onipresentes na natureza humana. Algo que desafiou a todos os sábios que já viveram na terra: O mal. O vilão passa a ser antes de tudo, um humano. A Demon Card, em especial, é uma amálgama de todas as possíveis razões para entrar no iter malis. A marionete cósmica, o vingador exaltado, o amante ressentido, o sádico inveterado... O seu “Rei” goza de uma honra dúbia que os seus próprios inimigos reconhecem: Ele é bondoso demais para ter se tornado a maior ameaça do mundo. E ficará patente que a sua proposta talvez seja o que há de mais seguro para a humanidade...

A pluralidade de temas abordados é enorme. A velha dualidade Humanos X Monstros é algo exaustivamente trabalhado desde que Ozamu Tezuka codificou a banda desenhada japonesa. No mundo das raves e das darkbrings, o monstro é algo extremamente bem cultivado. O sinônimo empregado são os Sentinoides... Seres que vivem num mundo subterrâneo... Sua guerra contra o bicho-homem é perpétua. Existem dezenas de clãs: A Raça Dragão – Ou Dragon Slayers, conforme foram transpostos a uma obra muito mais famosa... -, a Raça Demônio, que tem um papel de realeza, a Raça Marinha, a Raça Verde, entre outras... O leitor será jogado em outro dilema moral decisivo: Serão os humanos, a sua própria raça, os culpados por tal antagonismo?

Depois de considerados todos estes aspectos... Qual foi a influência de Rave nas subculturas posteriores? Um indivíduo pouco especializado poderia apontar de antemão Fairy Tail como a parte principal de tal espólio. Um conhecedor razoável do que foi feito desde o início do milênio pode facilmente verificar fortes laivos em mangás famosos como Fullmetal Alchemist, Mirai Nikki e os arcos tardios de One Piece. No entanto, há um fato que muitos ignoram.

                                      

 Sim, Haru e seu bando foram dublados em português e exibidos pela Jetix. Algo que é pouco lembrado mesmo pelos aficionados que viveram a época. É triste como nos esquecemos de tudo o que tenha havido passados dez anos...



Nota do Autor: O nome do mangá na Shonen Magazine é Rave. O anime em japonês foi chamado Groove Adventure Rave, e a versão inglesa é Rave Master. Diante da controvérsia, Rave é utilizado no texto...