domingo, 31 de maio de 2015

Takarajima - A Revolução Demonstrada




"Fifteen Men on the dead man's chest
Yo, ho, ho, and a bottle of rum...
Drink and the devil has done for the rest...
Yo-ho-ho, and a bottle of rum..."

Um dos bildungsromane mais icônicos da literatura ocidental é A Ilha do Tesouro, de Robert Louis Stevenson. Senão pelos seus grandes méritos, por sua assustadora permeabilização no inconsciente coletivo, obrada por transcriações em outras mídias - Das quais talvez o filme de 1972 seja o exemplo mais memorável. De todo modo, aqui temos uma das obras-chave da formação do imaginário infantil. Todo aquele que ler lembrar-se-á para sempre da sublime Hispaniola, a navegar pelas águas espumantes do Caribe, da mensagem honrada de Billy Bones e do usurpador Capitão Long John Silver. Parece então claro que landmarks como One Piece são parte da corrente de romances piratas por este iniciados. E quais são pois os demais elos?

Poucos sortudos conhecem Takarajima, a monumental adaptação feita para o anime. De fato, vários nomes que construíram tal arte são sempre recordados: Hayao Miyazaki, Yoshiyuki Tomino, Hideaki Anno - E este é uma serpente no caminho -, Isao Takahata, Satoshi Kon... Osamu Tezuka. Um grande gênio, seu criador, ergueu-se à sombra do Deus do Mangá. De fato, tal parece ser o fruto da divina providência, pois ambos eram homônimos.

Seu nome era Osamu Dezaki. Este poderia ser descrito como o reinventor de tal mundo. Ele goza da alta distinção de ter primeiro almejar transformar o anime televisivo - Então um reino comercial, dominado pelas obras infantis - em obra de arte. Eis o encarregado de recriar tal romance icônico. Tal como o autor, um reacionário alheio à modernidade e a toda forma de revolução. As semelhanças, porém são rasas. Stevenson era um Tory angustiado, um niilista desiludido com a bondade humana, crente de que o homem só teria pequenas vitórias antes do ocaso final. Dezaki, ao contrário do escocês, era um romântico com profundo amor pela humanidade.

(Daqui em diante há spoilers, porém aviso de antemão que, com exceção da cena final, a apreciação de Takarajima não depende de nenhum elemento surpresa.)

Ora, o conservadorismo de ambos os criadores pode parece irrelevante à compreensão das obras. Tal tese é indefensável. Antes de mais nada, A Ilha do Tesouro é um estudo velado das sublevações, do surgimento ao culmino canibal, no qual nenhum valor é garantido. Talvez por tal razão Dezaki tenha tido tanto esmero em sua adaptação: Em sua magnum opus Ie Naki Ko Remi, este critica a hipocrisia dos ideiais de 'Liberté, Egalité, Fraternité'. O seu Versailles no Bara dá à Revolução uma visão absolutamente cética, transformando as figuras de Phillippe Egalité e Saint-Just nos grandes antagonistas.

Mais ainda do que no original, é óbvio que Long John Silver é o 'one-legged man' a que todos se referem, o único homem que Flint temia, contudo um véu de bondade cega a todos, inclusive aos espectadores para as reais intenções de tal homem. A intenção permanece sendo de que o leitor tenha absoluta simpatia por tal figura, a despeito de todas as evidências, e que com ela permaneça até o fim do enredo.

Um episódio de trama não contida no livro realça seu papel. Imediatamente ele mata um de seus companheiros que suspeitava do seu real intuito. A ossada deste ressurge num navio fantasma, e aponta para seu algoz. Este nada até a embarcação, quebra tal esqueleto, e junto a ele o sortilégio. O triunfante Silver grita: "Eu não creio em Deus e nem no Diabo!!!" O pirata do livro era um protestante devoto que tremia ao ver a Bíblia profanada. E temos um marujo cujo ceticismo não é abalado pela mais evidente assombração. Tal ateísmo é a primeira pista do papel revolucionário deste, em nada diferente de Lênin, Stalin ou Mao-Tsé-Tung, da revolta contra as autoridades do Velho Mundo.

Imediatamente começa o contra-motim. Hands, seu mais leal companheiro dos tempos de bucaneiro, entra em frenesi incandescente e executa três companheiros. O manco é então preso. Estes veem-se no entanto, em um dilema: O homem comum não pode se gerir sozinho. A contragosto, liberam seu mentor, e o forçam à análise do mapa, até que este, desiludido e acuado, decide se unir em barganha com o grupo de Jim, Smollet e Livesey, tal qual um outro Danton ou Kerenski. Mesmo na humilhação, nobreza. Eis que a revolta se implode. O ouro é achado, porém aquela velha águia de duas pernas consegue fugir.

Um esquerdista mais obstinado poderia afirmar que há um retrato simpático da revolução, pois o altivo Abraham Grey - Novamente à revelia da obra original - morre nos verdes campos da Irlanda, lutando pela expulsão do invasor inglês. Ora, meus amigos, aqui temos a restauração, o diametral oposto da luta pela modernidade. O Anglicanismo foi a inovação moderna, que almejava esmagar as tradições de um velho e honrado povo, e impor-lhes a modernidade.

No entanto, todo este comentário parece distinto do brilhantismo da cena final. Jim Hawkins tornou-se adulto, e partiu da Almirante Benbow rumo ao mar. Numa taverna da Argélia, este encontra um velho marujo perneta, agora grisalho, bebendo para esquecer a morte da sua linda dama. Este desafia o agora crescido herói para uma queda de braço, cuja mocidade não pode ganhar. Após a derrota, clama em vão pelo velho amigo, tão amado e odiado ao mesmo tempo. O temido pirata, que foi de cozinheiro a capitão, declarou não conhecê-lo.

Ele segue-o ardorosamente em busca de contato. Flint, o papagaio, mal pode voar. Lança ao velho companheiro então, o desafio de erguer suas asas, sair do chão e sentar em seu ombro. A ave consegue. O velho segue para o cais, sibila sua cabeça para o pupilo e sorri. E vemos uma das linhas mais belas da história do anime:


"Naquele dia encontrei o meu Silver."

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