domingo, 16 de fevereiro de 2014

Os Arautos do Fim do Mundo


 Saint Seiya, Neon Genesis Evangelion, Revolutionary Girl Utena, Slayers, Blue Seed, Rave, The Big O, Tokyo Babylon... Quais conexões tais nomes nos despertam de imediato? Foram todos animes e mangás essenciais na popularização do gênero?

 Grandes componentes da Era de Ouro que fechou o milênio? Um neo-otaku lacônico poderia dizer: "São clássicos". Todas as respostas estão corretas, porém não completas. Há por acaso uma característica que crie um eixo estilístico no delicioso ínterim que foram os anos 90?

 Sem parcimonia, podemos notar uma grande e frequentemente ignorada semelhança entre todas estas obras. Todas carregam um forte tom apocalíptico e milenarista próprio de tal período. Após o colapso da União Soviética, uma incerteza palpitante salpicou a humanidade. As profecias de Nostradamus advertiam para o fim iminente em 1999, o que jogou o mundo em polvorosa. No Japão tal sinal foi sem dúvida catalizado. A economia da Terra do Sol Nascente tinha entrado em uma década perdida. Masayoshi Son, o seu maior magnata, chegou a perder 99% do seu patrimônio por ocasião do estouro da bolha do "pontocom". A taxa de natalidade começava a despencar irreversivelmente. A irreligião crescia assustadoramente a detrimento das velhas tradições do xintoísmo e do budismo, e também as seitas, como a famigerada Aum Shinrikyo. Dariam os céus clemência aos nossos pecados?

 Em todas as referidas séries, o homem é preponderantemente retratado como um ser desprezível. Os seres superiores teriam total razão em punir, exterminar e reformar. Invariavelmente eles eram derrotados ou dissuadidos, a um custo de incontáveis vidas. Os campeões da justiça eram sempre grupos pequenos, solitários e semi-secretos que eram admitidamente exceções em um mundo corrupto e leviano. Não há então lugar para otimismo inútil e nem mesmo os finais felizes - Quando existentes - são conclusivos. A humanidade nunca se salva. Ela é salva. O processo é invariavelmente passivo e mesmo os herois admitem que talvez os habitantes da Terra não sejam dignos de tal expiação. 

 Tal último pensamento tem sua síntese em Saint Seiya. Os deuses estão determinados a destruir a raça humana e Atena e seus Cavaleiros assumem o fardo da proteção do planeta. Ao "término" de tal aventura, quase todos os servos da Senhora da Sabedoria e da Guerra estão mortos. No discurso de morte de Hades, o senhor do submundo, ele não tenta esbravejar contra a sua inimiga, contra Seiya e nem contra os seus demais servos. Ele apenas a adverte chorosamente da iminente decepção que terão com os que protegem. A Grande Deusa então afirma a sua confiança em uma possível redenção do bicho-homem. Tal mangá até hoje não terminou, pois tal conversão ainda tarda em chegar. 

 Outro marco é o memorável Neon Genesis Evangelion. O castigo, na forma do Segundo Impacto, já veio. E não foi punição suficiente. Os "Anjos", aberrações tétricas nunca explicadas, vem nos destruir. A SEELE, a seita temível que controla o mundo de modo ventrilóquico, tenta se utilizar da catástrofe em prol de um ideario nebuloso. O tiro sairá pela culatra. Então vem a mais tórrida revelação: A Humanidade é o Décimo Oitavo Anjo. O mais perigoso. Eis que surge uma bifurcação nos destinos de todos: Liberte-se ou jaga pela eternidade no mar de LCL. E cada um precisa sair de duas prisões: O Eu e o Tu de Buber. 

 Uma outra destas memoráveis franquias leva tal autocrítica ao grau máximo. Blue Seed versa sobre a vingança do deus trovão do Konjiki, Susanoo. E a fúria divina é direcionada a uma nação que afronta a sua própria existência com o crime, o desmatamento, a ganância e a promiscuidade. É o Japão. Os Aragami, plantas encantadas, engolirão toda a natureza corrupta ao estado vegetal de que  No que talvez seja um dos manga mais de alma mais nipônica, há uma cena obscura que reverbera na mente dos escolhidos. Kunikida Daiketsu, policial ultra-patriota, salva a sua assistente Ryoko de um grupo de estupradores. Ele a joga uma triste dúvida: Este é o país que estamos tentando salvar? Valerá a pena? Talvez tenha sido o lamento mais profundo de depreciação nacional de toda a cultura pop japonesa. 

 No impulso do pós-modernismo, todos os aspectos da vida humana parecem estar sendo manipulados pelas forças vingadoras que manejam a criação em prol da destruição. A mensagem de Utena é que mesmo a nossa idealizada educação formal seria uma catapulta para o Fim do Mundo, e que devemos ver todos como ameaças fundamentais. Rave versa sobre o grande favor divino que é a manutenção do Universo, que torna a sua existência indigna e o seu colapso barato. Que cacemos individualmente outros exemplos que não são passíveis de inclusão e crítica em tal triste crítica. 

 Veio o amanhecer. O século XX, o mais violento de todos os tempos, acabou. Como o Apocalipse não veio, todos voltaram reclusamente para a sua ilusória felicidade. A ficção deste novo momento prima pelo otimismo e pela crença na inata bondade do homem. Para que falar de castigos divinos, em uma época em que autores como Richard Dawkins e Christopher Hitchens inocularam seu ateísmo hedonista nas massas? Qual a utilidade das preocupações, se o novo lema é "Yes, We Can?" Paulatinamente as ameaças passaram a ser aliens "científicos" facilmente destrutíveis pelo poder da amizade. Suas motivações são dúbias, mas desnecessárias em uma era que desconhece a coerência. E nem mesmo as Guerras do Iraque, do Afeganistão, da Somália e da Síria, o Onze de Setembro e a crise de 2008 foram capazes de quebrar tal sortilégio. Que saudades dos tempos da paranoia.